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Todos amam Mandela

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Pouco antes de Nelson Mandela deixar a presidência da África do Sul em 1999, a inquietação racial era um negócio lucrativo. Na biblioteca pública de Sandton, uma área nobre de Joanesburgo, eu assisti a uma palestra de um consultor, John Gambarana - especializado em ajudar pessoas a emigrarem - que advertia uma centena de pessoas, quase todos brancos, do caos e das mutilações que viriam no futuro.

Segurando um exemplar do livro de Lester Venter 'Quando Mandela Partir: a Vinda da Segunda Revolução Africana', ele disse: "pessoal, este livro é uma mensagem para que vocês acordem. A má notícia que ele traz é que [quando Mandela deixar a presidência] a merda vai acertar o ventilador. A boa notícia é que provavelmente nenhum ventilador estará funcionando."Menos de uma década depois de ser libertado, até aos olhos daqueles que viviam de disseminar o medo entre a população, Mandela deixou de ser um bicho-papão terrorista para ser o salvador da nação.

Os brancos sul-africanos o abraçaram do mesmo modo que a maioria dos norte-americanos brancos passaram a aceitar Martin Luther King: de má vontade mas agradecidos, embaraçados mas inteligentemente. No momento em que perceberam que sua antipatia em relação a ele era inútil, criou-se um mundo onde admirá-lo servia a seus próprios interesses. Porque, dali a pouco, eles não teriam escolha. Como o último líder do apartheid (F.W. de Klerk, que perdeu as eleições para Mandela) me disse naquele mesmo ano, "o mesmo equívoco que cometemos (a segregação racial) ainda estava sendo cometido nos EUA e nas ex-colônias. A questão é que o cometemos por mais outros 20 anos." Existem um milhão de diferenças entre o apartheid sul-africano e a segregação norte-americana, mas neste ponto Klerk estava absolutamente certo.

Nem os benefícios da integração, nem a urgência que ela demandava eram óbvios para a maioria dos norte-americanos nos tempos de Luther King. Um mês antes da Marcha sobre Washington de 1963, 54% dos brancos pensavam que o governo Kennedy estava "conduzindo a integração racial de maneira muito apressada". Em 1966, mais da metade dos norte-americanos tinha uma visão desfavorável em relação a Luther King. Somente depois que ele foi assassinado - talvez somente por ter sido assassinado - que os Estados Unidos começaram a perceber que os esforços de King junto a um movimento pelos direitos civis poupou-os da ignomínia de serem o último país a se livrar de um racismo previsto em lei. 

Levou cerca de 30 anos para que a lama atirada sobre Luther King fosse limpada e seu legado fosse polido a ponto de se tornar um tesouro nacional.

Em 1999, uma pesquisa da Gallup revelou que apenas Madre Teresa era uma figura pública mais admirada do que ele no século XX. Em 2011, 91% dos norte-americanos (incluindo 89% de brancos) aprovaram que um memorial a Luther King fosse colocado no Passeio Nacional.Apesar dos esforços do apartheid, não conseguiram matar Mandela nem quebrar-lhe o espírito. Frágil de saúde enquanto escrevo, ele não apenas sobreviveu a seus detratores - incluindo Margaret Thatcher e Ronald Reagan -, também foi muito superior a eles em sua busca por uma transição pacífica e uma democracia inclusiva.

Para citar apenas um exemplo, a Constituição sul-africana promulgada por Mandela em 1996 é a primeira no mundo a declarar ilegal a discriminação baseada na orientação sexual.Ainda assim não devemos santificar Mandela, por duas razões: a primeira é que transformá-lo em um santo equivale a tirá-lo do reino da política e elevá-lo ao nível de uma divindade. Uma vez elevado a esse nível, seu legado não pode ser debatido ou discutido porque seus feitos estarão enraizados não em seu papel de comandante de um movimento, mas na sua alma e consciência beatificadas.

Em segundo lugar, transformá-lo em um santo equivale a transformar em demônios todos aqueles que vierem depois dele. Thabo Mbeki e Jacob Zuma, os presidentes que se seguiram a ele, não seriam julgados pelo padrões comparativos de outros líderes globais e regionais (com todos os seus defeitos, até que eles se saem bem se comparados a Silvio Berlusconi, Vladimir Putin ou George W. Bush), mas pelo nível inalcançável de um mito canonizado.

Da mesma forma, seria um erro observar as desigualdades da África do Sul pós-apartheid e argumentar, como alguns de esquerda o fizeram, que não ocorreram grandes mudanças. Ninguém precisa negar o quanto as coisas ainda estão ruins para relembrar o quanto elas eram horríveis. Foi no tempo em que a União Soviética entrava em colapso e o capitalismo estava em seu auge que Mandela saiu da prisão, encarregado de liderar uma nação em desenvolvimento que estava sob uma ditadura racial e uma guerra contra si mesma. 

No ano em que foi eleito, afrikaners detonaram carros bomba, e o African National Congress (ANC) se envolveu em um tiroteio sangrento contra o Inkatha Freedom Party, no centro de Joanesburgo, o que resultou em muitas mortes. Dados os séculos que enraizaram as desigualdades raciais, não é razoável que esperássemos que ele, ou o governo que ele conduziu, as eliminasse em tão pouco tempo. Os brancos sul-africanos possuem todos as razões para amarem Mandela.

O preço que eles tiveram de pagar para manter todos seus privilégios e todas as coisas que eles roubaram foi viver em uma democracia bem vinda de volta à comunidade internacional. Este é um ótimo negócio - talvez bom até demais. Mas os negros sul-africanos e os progressistas pelo mundo também possuem boas razões para amá-lo. Podemos argumentar que, negociando a transição, Mandela tenha cedido demais a interesses escusos, mas não podemos argumentar razoavelmente que ele nada conquistou.

Quando chegou a época de deixar o poder, havia uma eleição onde todos puderam participar e cinco anos depois houve outra - e as duas ocorreram pacificamente, recolocando o ANC no poder.

Nos nove anos entre sua libertação e sua saída do poder, Mandela entregou paz, estabilidade e democracia. Dados todos os problemas que ele herdou, essas três coisas sozinhas valem ser comemoradas.

Gary Younge, do The Nation. Tradução de Roberto Brilhante, Carta Maior

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