Acho sempre curioso quando escuto que as mulheres e @s negr@s precisam ter voz na política (e outros grupos excluídos). Não porque haja algo de estranho em uma reivindicação tão justa. Mas porque ela me lembra de uma teoria que criei um dia, e que chamei de os "sentidos das desigualdades".
A minha teoria consiste, basicamente, em acreditar que os preconceitos implicam uma experiência sensorial própria. Eles entram pelos sete buracos das nossas cabeças, como se pudéssemos ser racistas ou sexistas com os nossos cinco sentidos.
Isso é muito mais sutil do que o machismo que se manifesta por meio de uma frase como "essa mulher merece ser estuprada", ou através do xingamento de "macaco" dirigida a uma pessoa negra. Mas não significa menos perverso.
Para quem sofre os sentidos das desigualdades, é como se estivesse suspensa no ar uma agressão iminente, a todo momento. Para quem pratica, é como um gesto natural, instintivo. Como comer, ouvir, enxergar, sentir e cheirar.
1º sentido da desigualdade: o olhar
Uma vez uma amiga negra me disse que até o olhar pode ser racista. Ela argumentava que é comum que as pessoas brancas não se lembrem do rosto de pessoas negras, ou achem que elas são todas parecidas.
Eu fiquei chocada em perceber que ela tinha razão. O preconceito impregna de tal forma no que somos e como entendemos o mundo que ele molda a nossa capacidade de memorizar rostos e de distinguir entre eles.
Nós, mulheres, estamos acostumadas (o que não significa conformadas) com uma relação incômoda com o olhar. Em todos os espaços públicos, sejam eles políticos, de trabalho ou até mesmo de lazer. Olhares que percorrem o corpo todo e são encontrados, perdidos e incômodos, dentro de um decote.
Olhares gulosos que, mais do que uma atração entre iguais, afirmam uma posição submissa do objeto de desejo de outro. E a submissão é rapidamente reconhecida quando baixamos o olho, envergonhadas da condição de mulheres que atraem o desejo, mas que não possuem voz para dizer não.
2º sentido da desigualdade: o paladar
Eu costumo brincar que basta andar de casa até o ponto de ônibus para uma mulher se sentir comestível. Afinal, qualquer caminho corriqueiro pela rua é inundado de "gostosa", "delícia", "te chupava toda", "te comia todinha".
Já cheguei a pensar que tinham me confundido com uma mulher fruta. Mas não. A questão é que ocupar essa posição submissa de desejo de outro é vir ao mundo para satisfazer as necessidades fisiológicas de alguém. De forma compulsória. E, já dizia o cartaz de um filme brasileiro "o homem é sexo e estômago".
No caso das mulheres negras isso é ainda agravado pelo "sabor exótico", como se minhas amigas que trabalham, militam, sorriem e choram fossem apenas aperitivos besuntados de pimenta e dendê. O sabor exótico, contudo, ativa a libido. Inclusive o paladar internacional.
3º sentido da desigualdade: o olfato
Nós, mulheres, fomos criadas para propiciar ao mundo uma experiência sensorial agradável. Estarmos bonitas, alinhadas e com as unhas impecáveis. E, o mais importante, cheirosas. Até porque o paladar depende do olfato.
Mas o cheiro é, antes de tudo, um divisor de classe e raça. Há pouco mais de um ano uma ex-BBB declarou, ao vivo e em rede nacional, que ela tinha um pouco de negra. Porque se ela não usasse desodorante ficava com "cheiro de negrinha".
4º sentido da desigualdade: o toque
A relação entre toque e machismo é um caso clássico dos "sentidos das desigualdades".
Quantos desconhecidos ou colegas de trabalho não se sentem muitas vezes confortáveis para apalpar, acariciar e ter um contato com o corpo feminino que, seguramente, eles não costumam buscar em seus pares masculinos. É como se eles dissessem, com a palma das mãos, que o corpo feminino é de todo mundo. Menos das próprias mulheres.
Se o tato busca o corpo das mulheres, ele, com a mesma frequência, foge do corpo de trabalhador@s. Especialmente de trabalhador@s negr@s. Não precisamos conhecer alguém que esteja sentado em uma mesa de reunião para trocarmos beijos no rosto. Mas dificilmente fazemos o mesmo quando damos bom dia à faxineira que limpa nossa sala de trabalho há anos.
5º sentido da desigualdade: a audição
É a relação entre falar e ouvir, contudo, a que melhor expressa a teoria dos "sentidos das desigualdades".
Pode o subalterno falar? é o provocativo título do clássico livro da indiana Spivak. A pergunta que eu sempre me faço é: mas o opressor irá ouvir?
É isso que eu acho curioso quando escuto alguém dizendo que as mulheres precisam ter voz. As mulheres não têm voz porque, frequentemente, as pessoas não escutam. Basta notar quantas vezes a voz feminina é silenciada por uma voz concorrente e masculina.
Lembro de uma vez, em uma reunião que, cada vez que eu começava a falar, um homem falava ao mesmo tempo, como se eu fosse inaudível. Na terceira vez que aconteceu, eu perguntei, ríspida, se ele era surdo. Mas eu já sabia a resposta. Ele era surdo. Porque a minha voz de mulher não devia ressoar naquele espaço.
Para que a voz feminina possa se tornar audível é comum que ela tenha que ser introduzida por um timbre masculino. É como se o sentido daquilo que falamos tivesse que ter um fiador, um padrinho. O pai, o chefe, o colega de trabalho.
Quantas vezes não vemos mulheres se posicionando de forma brilhante nos espaços públicos, sem que nenhum ouvido dê atenção às suas palavras. Enquanto observações absolutamente banais de homens brancos ressoam com milhares de decibéis. Isso sem contar quando a ideia brilhante da mulher emudecida é repetida pelo homem banal, ganhando uma inesperada plateia de admiradores atentos.
As desigualdades são impregnadas de sentidos. Mas esses significados são tão profundos que até mesmo nossa capacidade cognitiva é formatada pelo machismo e pelo racismo. Superar essas desigualdades é muito mais do que dar voz aos excluídos. É mudar a forma que vemos, ouvimos, falamos, sentimos e cheiramos o outro.
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Mariana Manzzini