Jornalismo investigativo ou cumplicidade?
Enquanto empresários da mídia impressa ou concessionários do serviço público de radiodifusão – e seus porta-vozes – reafirmam, com certa arrogância, seu insubstituível papel de fiscalizadores da coisa (res)pública, o país toma conhecimento, através do trabalho da Polícia Federal, de evidências do envolvimento direto da própria mídia com os crimes que está a divulgar.
E mais: a solidariedade corporativa se manifesta de forma explícita. Por parte de empresas de mídia, quando se recusam a colocar setores de seu negócio entre os suspeitos da prática de crimes, violando assim o direito à informação do cidadão e seu dever (dela, mídia) de informar. Por parte de jornalistas, quando alegam estar sujeitos a eventuais relacionamentos “de boa fé” com “fontes” criminosas no exercício profissional do chamado jornalismo investigativo.
Será que – na nossa história política recente – o recurso retórico ao papel de fiscalizadora da coisa (res)pública não estaria servindo de blindagem (para usar um termo de agrado da grande mídia) à indisfarçável partidarização da grande mídia e também, mais do que isso, de disfarce para crimes praticados em nome do jornalismo investigativo?
Imprensa partidária
Historiadores da imprensa periódica nos países onde ela primeiro floresceu, sobretudo Inglaterra, França e Estados Unidos, concordam que ela – ou o de mais parecido com aquilo que hoje entendemos como tal – nasceu vinculada à política e aos partidos políticos. Numa segunda fase, transformou-se em empresa comercial, financiada por anunciantes e leitores. No Brasil, as circunstâncias históricas certamente nos diferenciam dos países citados, mas não há distinção em relação às origens políticas e partidárias da imprensa nativa.
Foi Antonio Gramsci, referindo-se à imprensa italiana do início do século 20, quem primeiro chamou a atenção para o fato de que os jornais se transformaram nos verdadeiros partidos políticos. Muitos anos depois, entre nós, Octavio Ianni chamou a mídia de “o Príncipe eletrônico”.
Apesar disso, a imprensa que passa a se autodenominar “independente” é aquela que é financiada, sobretudo, pelos anunciantes e, ao longo do tempo, reivindica sua legitimação no princípio liberal do “mercado livre de ideias”, externo e/ou interno à própria imprensa.
No Brasil dos nossos dias, até mesmo os empresários da grande mídia admitem seu caráter partidário, como, aliás, já afirmou publicamente a presidente da ANJ.
Jornalismo investigativo
O chamado “jornalismo investigativo” acabou levando a grande mídia a disputar diretamente a legitimidade da representação do interesse público, em relação tanto ao papel da Justiça – investigar, denunciar, julgar, condenar e, eventualmente, perdoar – como à política institucionalizada de expressão da “opinião pública”, que cabe aos políticos profissionais eleitos e com cargo nos Executivos e nos Parlamentos.
Ademais, o assumido papel de oposição partidária parece fazer com que setores da grande mídia não diferenciem “jornalismo investigativo” – e/ou relação com “fontes” – do exercício de uma prática profissional que escorrega perigosamente para o crime, sem nenhum limite ético e/ou legal.
Jornalismo investigativo e cumplicidade com práticas criminosas podem estar sendo confundidos. Vale, portanto, lembrar a afirmação de Paul Virilio: “A mídia é o único poder que tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra”.
Parece que, lamentavelmente, atingimos a esse perigoso e assustador limite no Brasil.
Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, entre outros livros, de Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos, Paulus, 2011.