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Rio 450 anos: e os fluminenses?

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Eu nasci no Rio de Janeiro, mas não sou carioca.

Rio de Janeiro e São Paulo são os dois estados da federação em que Estado e Capital se confundem em seus nomes. Portanto em São Paulo há paulistanos e paulistas. No Rio há cariocas e fluminenses. Porém diferentemente de São Paulo, essa distinção no Rio de Janeiro parece ser muito mais fluida, principalmente para quem vive na chamada Região Metropolitana do Estado, ou Grande Rio, onde estão a cidade do Rio de Janeiro e os municípios ao seu redor. No Rio de Janeiro há então como distinção os cariocas da “gema” e os cariocas.

Eu não sou carioca. Para mim 20 graus não é inverno. Eu não vou ao shopping de chinelo. Eu não gosto de horário de verão. Eu não tomo chopinho na praia depois do expediente. Eu não moro pertinho da praia. Eu não aplaudo o pôr-do-sol no Arpoador. Eu não vou à praia da Barra aos finais de semana. Não frequento o Baixo Gávea. Não tenho o corpo bronzeado de Sol. Não malho para ficar desfilando de sungão nas areias das praias da Zona Sul. Não vou à rodas de samba. Não torço para nenhuma escola de samba. Não decoro os sambas-enredos. Não passeio de bicicleta pela Lagoa. Não ando diariamente pelo Jardim Botânico. Não vou ao carnaval de rua. O garçom não é meu amigo e não sei o seu nome.

Eu sou fluminense. É duro um botafoguense ter que afirmar isso, mas acredito que para flamenguistas e vascaínos a “dor” seja a mesma. Sou nascido, criado e habitante da Baixada Fluminense. Esta região, a Baixada, é composta mais ou menos por 13 municípios (existem diferentes tipos de classificação), mas quem nasce e habita alguma de suas cidades, sabe que há uma relação intrínseca entre quase todas elas.

Não, eu não o odeio a cidade do Rio de Janeiro. Muito pelo contrário. Minha vida acadêmica, profissional e cultural se fez andando pelas ruas do Rio. Fiz o antigo segundo grau no Maracanã/Tijuca, fiz a graduação e mestrado no coração do Centro, trabalhei anos no Galeão e meu doutorado também foi pelas terras da Ilha do Governador, para ser mais exato na Ilha do Fundão. Trabalhei na Glória, frequentei casas de amigos na Zona Sul, cinemas, teatros, festas e, raramente, praias também por lá.

Na minha adolescência, e talvez juventude, tive vergonha, às vezes, em dizer que era da Baixada Fluminense. Porque quem é da Baixada vive em um certo limbo identitário. Estamos próximos demais do Rio, e por isso embebidos por essa “entidade” carioca, mas não temos os benefícios que a cidade do Rio de Janeiro possui. Ao mesmo tempo não estamos distantes o bastante para assumirmos outras identidades territoriais, como quem vive em Campos, Macaé, Itaperuna ou até mesmo Petrópolis ou Niterói, que já foram capitais. A primeira foi “capital de veraneio” da família imperial, a segunda foi capital do Estado do Rio de Janeiro, enquanto a cidade do Rio de Janeiro era a capital do Estado da Guanabara (vai entender?).

A positividade atrelada à identidade territorial e cultural do Rio foi forjada no Brasil a partir da década de 1950, com a Copa do Mundo e os processos de internacionalização da imagem do país realizados em um dos breves períodos em que efetivamente fomos uma democracia no século XX. A música, principalmente com o Samba e a Bossa Nova, foi outro caminho de construção desta identidade que, de certa forma e durante anos, projetou ao mundo e ao próprio Brasil o que é ser do Rio de Janeiro. Ser carioca é percebido por muita gente como ser… brasileiro, apesar dessa afirmação não ser mais uma unanimidade. Com o passar dos anos e em outros estados do país ocorreu uma transformação. Uma carga negativa formou-se em se dizer que é do Rio, pois parece haver uma percepção de “malandragem” ou “desvio moral” em quem fala com “chiado” entre o -t.

Porém essa identidade não é fixa, ela se desloca. Há também os favelados e os suburbanos cariocas, que sofrem com as agruras da violência, da desigualdade social e econômica, mas que de certa maneira também foram incorporados pela idealização e romantização do arquétipo do que é “ser” carioca, onde o samba, o funk e outros elementos populares fundem-se à alta cultura praiana e intelectual da Zona Sul. Políticos que não possuem absolutamente nada a ver com subúrbios ou favelas souberam se utilizar muito bem deste expediente identitário e simbólico, vale lembrar das campanhas eleitorais de Sergio Cabral e Eduardo Paes.

Como escapar da explosão de beleza e cores ao sair do Túnel Rebouças e dar de cara com a paisagem da Lagoa e seus entornos? Onde efetivamente se tem a impressão da perfeita harmonia entre Natureza e Urbes (apesar de sabermos que não é muito bem assim). Algumas partes do Rio de Janeiro são inacreditavelmente extasiantes, e não é difícil de compreender porque os gringos ficam completamente enlouquecidos quando aqui/lá chegam.

Mas… e os fluminenses? Bom, também e basicamente convivemos com esteriótipos muito fortes. Como “cariocas” temos quase todas as associações pertinentes aos cariocas da gema, quase… Mas com o adendo da percepção coletiva da extrema violência, da extrema pobreza, da extrema sujeira, da extrema falta de urbanização. Não que estas percepções não reflitam a realidade. Mas não definem absolutamente quem somos.

Para exemplificar podemos demonstrar a fala de dois candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro durante a campanha eleitoral de 2014. Marcelo Crivella disse que devia-se melhorar as oportunidades de trabalho na Baixada “para que eles (bandidos) não venham de lá para roubar na Capital”. Pezão, atual governador, ao justificar a preferência da ida do Metrô à Barra ao invés da Baixada disse que “era para dar mais conforto às empregadas domésticas e ao pessoal que trabalha no comércio da Barra”. Portanto não haveria saída identitária a quem nos governasse: morador da Baixada ou é “bandido” por falta de oportunidades ou tem trabalho “subalterno”. Há milhares de empregadas domésticas e comerciários na Baixada, e isso nos engrandece, mas somos muito, mas muito mais do que somente isso. Eu sou doutor, mestre, sociólogo, poeta, escritor e professor titular do Colégio Pedro II. Eu sou da Baixada Fluminense! E muitos outros “iguais” a mim também são ou estão no processo de mobilidade social, cultural e educacional.

Então em um determinado momento (não sei quando) decidi ter orgulho por ser fluminense, em ter nascido nesta terra e viver neste território. Hoje vivo na Baixada porque minhas famílias vivem aqui, meus amigos, porque o custo de vida é mais baixo e por uma decisão política. Sim, política! Continuarei reclamando, gritando, comparando e apontando as diferenças de nossa rede urbana e de saneamento, nossa terrível deficiência nos transportes urbanos, a falta de produtos e dispositivos culturais de alto nível, nosso corpo político coronelista e retrógrado, nossa bárbara violência (eu, minha esposa e sogra fomos violentamente assaltados na tarde do dia 08/01/2015 em Nova Iguaçu). Mas também ressalto e lembro dos vizinhos que formam grandes famílias em calçadas largas, da integração simbiótica entre as muitas cidades, dos banhos de cachoeira no Parque de Mesquita/Nova Iguaçu, em Tinguá ou no Parque do Gericinó em Nilópolis. Da pipa na rua. Do futebol no campo de terra. Da piscininha de plástico na laje.

E antes que pensem que sou anti-carioca, digo que não sou e não quero ser anti-nada, mas sim ser múltiplo. E neste momento de minha vida sinto-me cada vez mais fluminense, iguaçuano, mesquitense, nilopolitano, belford-roxense, queimadense, caxiense, meritiense, etc. E até… carioca.

*****
Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Criou e administra o Blog Palavras Sobre Qualquer Coisa desde 2007 e,  defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

5 comentários:

" limbo identitário" , adorei essa expressão. Nunca achei nada parecido com o que sentia. Nasci na Baixada, num município de Magé. Lembro que quando era criança e, vinha pro Rio achava todo mundo diferente me sentia uma estranha num mundo mais estranho ainda.Quando vim pro Rio (subúrbio) foi difícil me acostumar. Continuei por longo tem me sentindo um peixe fora d'água, afinal, ninguém andava descalço rsrsrs. Hoje acho a zona sul um outro planeta e pra dizer a verdade não me enche os olhos. Acho que nasci mesmo pra morar na Baixada kk
Bjs

Oi, Beth!
Só fui entender o que é ter alma carioca quando vim para o Rio. É visível na crônica a questão do bairrismo. Assim como existe a richa entre paulistanos e cariocas - os cariocas rivalizam entre si e quem não é do Estado tem que entender que fazer piada do outro já se tornou parte do folclore.
Beijus,

Pois é...
Eu também gostei do termo. rsrs
Adorei o seu comentário.
Reflete muito bem o que sentimos quando temos que conviver no dia a dia com este Cartão Postal, vendido mundialmente pela industria do turismo, e pelos governos.
Então, viva a Baixada, suas ruas e calçadas!
Beijo Lucia.
Valeu.

Adorei e estou emocionado com o comentário de todas. Fico extremamente recompensado com a possibilidade de produzir sensações e emoções às vezes complementares, às vezes contraditórias ao que escrevi.

Muito Obrigado.

Lucia e Luma,
Parece dupla caipira...rsrs
O autor do texto está super emocionado com o comentários de você, e eu, feliz.
Beijão.
Valeu.

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