seja em que circunstância for,
mata sempre em legítima defesa”
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“Lei no Brasil é igual vacina: umas pegam, outras não.” Não sei quem foi o primeiro a falar isso, mas é um dito que se repete, com muita razão. Muitas leis “não pegam”. São aprovadas, mas nunca obedecidas.
E não são só leis. Portarias, decisões judiciais, um monte de coisas “não funcionam” na prática. Pensei nisso quando li que o Conselho Nacional de Justiça determinou uma cota para negros no cargo de Juiz. Por ela, 20% dos juízes devem ser negros.
São muito poucas as autoridades judiciais negras por aqui. O exemplo quase único de que todos se lembram é do ministro Joaquim Barbosa, do STF.
Mas houve grandes batalhadores negros a serviço de boas causas no Judiciário. O que mais impressiona é Luiz Gama (1812-1882), precursor do abolicionismo. Ele era filho de um fidalgo de origem portuguesa e de uma negra livre e libertária chamada Luíza Mahin, que participou de todas as rebeliões negras ocorridas no início do século XIX na Bahia. E também de outras lutas. Teve papel importante na Sabinada, revolta liderada pelo médico Fernando Sabino Vieira, que pretendia criar a “Rebública Bahiense”, em 1838.
Caçada pela polícia, assim como outros líderes da revolta, teve que fugir de Salvador, deixando com o pai o filho Luiz, de apenas 8 anos de idade. Dois anos depois, o pai se revelou um crápula e vendeu o filho para um traficante de escravos de São Paulo, para pagar uma dívida de jogo.
Luiz Gama foi escravo até os 18 anos, quando conseguiu escapar da escravidão. Não se sabe como, porque todos os papéis relacionados ao regime escravista no Brasil foram queimados no início da República, a mando do ministro da Justiça, Rui Barbosa.
Luiz Gama havia aprendido a ler, trabalhou com o desembargador Furtado de Mendonça, que colocou à sua disposição toda uma vasta biblioteca jurídica. O ex-escravo leu tudo, tornou-se jornalista, poeta e rábula (advogado não formado, o que era permitido na época), militando nisso tudo pela libertação dos escravos e pela República. Conseguiu libertar mais de quinhentos escravos, fazendo aplicar leis esquecidas, que eram tratadas como se não tivessem pegado.
Ao defender um escravo maltratado que matou seu senhor, em Araraquara, disse a frase que está no alto, provocando um grande tumulto.
Pouco antes de morrer ele já não tinha muita esperança em acabar com a escravidão por vias legais. Começava a se aproximar da ideia de um outro grande batalhador negro, chamado Antônio Bento. Se Luiz Gama ficou durante muito tempo esquecido e hoje é lembrado por muita gente, Antônio Bento continua no limbo, injustamente. Antes de ser assassinado por fazendeiros, ele ficou conhecido como “O Fantasma da Abolição”.
Filho de português e de uma negra, Antônio Bento estudou direito, tornou-se promotor em Atibaia, mas abandonou o cargo para se dedicar integralmente à luta pela libertação de escravos, mas não pelas vias legais.
O movimento chamado Caifazes, liderado por Antônio Bento teve esse nome por inspiração bíblica. Antes de entregar Jesus a Pilatos, Caifás, no Evangelho segundo São João, teria dito: “Vós não sabeis, não compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo não pereça?”.
Mais os Caifazes não entregavam ninguém. Ao contrário, eles libertavam. Infiltravam-se nas fazendas e estimulavam os negros a fugir. Muitos tinham medo. Afinal, o escravo fugido e recapturado comia o pão que o diabo amassou. Mas muitos topavam fugir, e outros que queriam mas não tinham coragem eram sequestrados e levados pelas mesmas vias que os fugitivos. Iam para São Paulo, onde ficavam escondidos em igrejas, casas particulares ou casas de comércio de simpatizantes da causa. Depois, seguiam para Santos a pé ou de trem, apoiados por ferroviários também militantes ou simpatizantes do movimento considerado subversivo. Lá, ficavam no quilombo do Jabaquara até serem levados para algum lugar onde pudessem viver e trabalhar como homens livres.
Será que teremos gente como Luiz Gama e Antônio Bento como juízes?
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Mouzar Benedito/Blog da BoiTempo