O surgimento dos ‘coxinhas’
“Até algum tempo atrás, eles não tinham essa necessidade de diferenciação".
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A diferenciação se dava naturalmente, com a absurda desigualdade social das metrópoles brasileiras.
Os protestos iniciados em junho de 2013 trouxeram com eles o emprego em massa de um vocábulo conhecido por descrever um petisco popular pouco saudável: a coxinha. Mas agora a palavra adquiriu novo sentido e eu demorei a entender com certeza seu significado preciso. A fala dos manifestantes trazia cada vez mais a meus ouvidos cariocas esta palavra que eu só conseguia entender pelo contexto: “coxinha” podia ser um adjetivo ou substantivo, a depender da situação, e referia-se a alguém meio tolo, ou conservador. Também ouvi falar do verbo “coxinhar”. Que se refere à atividade do “coxinha”, ou às ações de um. Mas isso foi pouco para mim e para muitos outros brasileiros.
O que é, afinal, um “coxinha”? O que é ser “coxinha”? O vocábulo, amplamente usado nos protestos, era um enigma para mim. Encontrei duas publicações que tentaram explicar o novo significado do velho e gorduroso petisco de botequim: ano passado, a Folha de S.Paulo (22/04/2012), em sua revista de domingo, fez uma boa tentativa. Começou com uma explicação de sua abrangência geográfica: trata-se de gíria paulistana. Para explicar o novo significado da palavra entrevistou pessoas que já tinham ouvido falar dela. Logo surgiu um consenso sobre o seu significado: “coxinha” é gente engomada, certinha, que segue a maioria. Gente convencional e conservadora, em suma.
Mas foi o diário Correio do Brasil (23/06) que apresentou a melhor explicação para o vocábulo que tomou conta dos protestos. O periódico não buscou somente a nova acepção da palavra, mas sua relação com os protestos. Juntou o sociólogo Leonardo Rossato e o professor de português Michel Montanha, que elaboraram uma “análise sociológica” do coxinha e apresentaram uma hipótese sobre sua origem:
“Coxinha, sociologicamente falando, é um grupo social específico, que compartilha determinados valores. Dentre eles está o individualismo exacerbado e dezenas de coisas que derivam disso: a necessidade de diferenciação em relação ao restante da sociedade, a forte priorização da segurança em sua vida cotidiana, como elemento de “não-mistura” com o restante da sociedade, aliadas com uma forte necessidade de parecer engraçado ou bom moço”.
O vocábulo parece ter sua origem nos pobres “almoços” dos policiais nos anos de 1980, que recebiam vales-refeição tão desvalorizados que acabaram apelidados de “vale-coxinha”. Com o tempo, policial e coxinha tornaram-se sinônimos. Os programas policiais no rádio e na TV acabaram por estender o novo significado da palavra a todos aqueles preocupados com a segurança acima de tudo.
Mas por que os coxinhas agora tornaram-se tão notórios? Por que acabaram mais visíveis à sociedade neste momento de protestos? O Correio do Brasil explicou:
“Até algum tempo atrás, eles não tinham essa necessidade de diferenciação. A diferenciação se dava naturalmente, com a absurda desigualdade social das metrópoles brasileiras. Hoje, com cada vez mais gente ganhando melhor e consumindo, esse grupo social busca outras formas de afirmar sua diferenciação. Para isso, muitas vezes andam engomados, se vestem de uma maneira específica, são ‘politicamente corretos’, dentro de sua noção deturpada de política, e nutrem uma arrogância quase intragável, com pouquíssima tolerância a qualquer crítica.”
Engomados, bons moços, preocupados em acentuarem suas diferenças do resto da sociedade, inimigos da crítica… Acabaram ridicularizados pelo restante da sociedade. Antes dos protestos, eles só eram visíveis em São Paulo. Coxinha era fenômeno tipicamente paulistano: “Ele não aparecia, portanto não poderia ser criticado ou ridicularizado”, explicou o periódico. O coxinha, paradoxalmente é um símbolo do amadurecimento da nossa sociedade, concluiu o jornal: a sociedade brasileira amadureceu porque a estrutura de classes sociais tornou-se mais complexa e diferenciada.
Os protestos de junho em diante expuseram os coxinhas à população brasileira. Narcisistas, incapazes de identificação com o próprio povo, movidos pela necessidade de diferenciação, a teoria de Thorstein Veblen, norte-americano, economista, sociólogo e mentor de Jean Baudrillard, explica em parte esses “cidadãos diferenciados”. Para Veblen, os seres humanos são guiados por necessidade de diferenciação e distinção. Vicente de Paula Faleiros, em seu livro A política social do Estado capitalista (1987, Cortez), comentou o sociólogo norte-americano:
“O homem atua por emulação e pelo desejo de se evidenciar entre os demais. Desta maneira, as classes superiores se distinguem das classes trabalhadoras pelo evidente ‘não-trabalho’. O lazer, a moda, o consumo ostensivo são todos meios para se distinguir.”
Distinção, moda, lazer e consumo conspícuo realmente fazem parte do universo dos coxinhas. Só encontro um problema com esta explicação: ela naturaliza uma condição humana que na realidade é produzida socialmente. Ou seja, os coxinhas são coxinhas porque adotam um determinado sistema de crenças e valores compartilhado por outros iguais. Não são coxinhas porque a natureza os fez assim. Eles escolheram ser o que são.
Distinção do resto da população é a meta e a vida dos coxinhas. Por isso, o desprezo aos protestos do povo. Eles estão bem longe do mundo de onde vem a maioria daqueles que protestam. E querem deixar isso bem claro. É apenas justo que agora eles caiam no ridículo aos olhos de muitos. Porque a gente brasileira finalmente acordou e os coxinhas lá no fundo sabem que não passam de acomodados pedantes, e não farão parte das mudanças que virão para um país que já não tolera candidamente os abusos dos poderosos.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor