Para uma melhor reflexão, vou mencionar três indicações por vez.
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Fundamentos para uma leitura crítica do mundo social
As reflexões produzidas pelo feminismo – numa economia expressiva, já que se trata na realidade de feminismos, no plural – colocam questões fundamentais para a análise da opressão às mulheres nas sociedades contemporâneas. Mas não é só da posição relativa das mulheres que trata a crítica feminista.
O conjunto cada vez mais volumoso dos estudos feministas expõe os limites das democracias quando estas convivem com a exploração e a marginalização de amplos contingentes da população.
Analisam, assim, mecanismos que operam para silenciar alguns grupos e suspender a validade das suas experiências – eles operam de maneira específica sobre as mulheres, mas não se reduzem a uma questão de gênero. Tratam das conexões entre o mundo da política, o mundo do trabalho e a vida doméstica cotidiana. Na produção mais recente, sobretudo, apresentam contribuições incontornáveis para o entendimento de como diferentes formas de opressão e de dominação operam de forma cruzada e sobreposta. Cada vez mais, falar da posição das mulheres é falar de como gênero, classe, raça e sexualidade, para mencionar as variáveis mais mobilizadas, situam conjuntamente os indivíduos e conformam suas alternativas.
Em sua diversidade, a produção feminista questiona a subordinação e confronta, permanentemente, discursos que se fundam na “natureza” para justificar a opressão.
A lista que apresentamos traz um conjunto (entre muitos outros possíveis) de leituras feministas que colaboram para entender o mundo contemporâneo e os desafios que enfrentamos para a construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais livre. A ordem segue de maneira aproximada a data da publicação original das obras.
4. Carole Pateman – O contrato sexual (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993).
As teorias contratualistas, que representaram o primeiro esforço para justificar a autoridade política sob uma perspectiva liberal, afirmam que a sociedade nasce de um acordo entre todos os homens. Mas seu pressuposto oculto, busca mostrar a inglesa Pateman, é a dominação prévia dos homens sobre as mulheres. Mais do que uma releitura crítica, sob um ponto de vista feminino, dos teóricos clássicos do contrato social, porém, o livro coroa o esforço de Pateman para interpelar o instrumento do “contrato”, que o pensamento liberal apresenta como o mecanismo padrão que permite legitimar relações sociais assimétricas. Se há “contrato”, há concordância voluntária das partes, logo não haveria o que objetar. Mas alguns tipos de contrato, como o de trabalho ou o de casamento, implicam a subordinação de uma das partes. Movidos por necessidades que nascem de sua posição social desprivilegiada, trabalhadores e mulheres se veem constrangidos a alienar – contratualmente – sua autonomia. A obra gerou um enorme debate e exerceu influência decisiva sobre toda a teoria política feminista posterior.
5. Bell Hooks – Feminist theory: from margin to center (Cambridge, MA: South End Press, 2000).
Não é possível, hoje, falar em feminismo sem considerar as contribuições das feministas negras. Suas elaborações teóricas, profundamente entrelaçadas à atuação política em sociedades que não são apenas masculinas, mas orientadas pelos privilégios de homens e mulheres brancas, desafiaram o universalismo de um modo que é hoje incontornável. Feminist theory: from margin to center, publicado em 1984, pode ser hoje considerado um ponto de origem no debate sobre o lugar relativo das mulheres negras e a convergência entre gênero, raça e classe – ou, como parte da literatura vem preferindo, a interseccionalidade. A força das elaborações presentes neste livro está no enfrentamento aberto do fato de que as mulheres também estão na posição de opressoras e que da opressão masculina não decorrem laços ou uma solidariedade comum entre elas. Ao afirmar que o sexismo não determina de forma absoluta o destino das mulheres e que é preciso compreender como raça e classe atuam na construção das hierarquias, Hooks colaborou para a construção de uma agenda que permanece como um desafio para o feminismo contemporâneo.
6. Iris Marion Young – Justice and the politics of difference (Princeton: Princeton University Press, 1990).
A cientista política estadunidense Iris Marion Young, que faleceu precocemente em 2006, deixou uma obra curta, mas de grande impacto. Justice and the politics of difference marca o momento de maior radicalidade de seu pensamento. Ela observa como o apelo ao “universal”, tão presente na tradição filosófica do Ocidente, trabalha sistematicamente para naturalizar as posições dominantes (homem, branco, proprietário etc.) e assim invisibilizar os dominados. Em vez da busca pela reconstituição de um universal que nunca cumpre sua promessa de sê-lo, ela prega uma política da diferença que reconheça o caráter socialmente situado de todos os discursos. E, em vez de um padrão abstrato de justiça, ela propõe que se entenda que a justiça é o enfrentamento aos padrões de opressão e dominação presentes em cada circunstância histórica.
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Autores: Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel.