Para compreender a brutal misoginia do antipresidente é necessário falar de Cassia, Dilma e Marielle.
Em 18 de fevereiro, o antipresidente Jair Bolsonaro precisava tirar o foco da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, pessoa-chave para esclarecer o esquema de “rachadinhas” no gabinete de Flávio Bolsonaro, a relação da família Bolsonaro com as milícias que atuam no Rio de Janeiro e também quem mandou matar Marielle Franco – e por quê. A eliminação de Nóbrega, com vários indícios de execução, voltava a colocar em destaque as relações dos Bolsonaros com as milícias. Era preciso desviar a atenção. Como de hábito, Bolsonaro usou o velho truque: criou um novo fato ao atacar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. A repórter, uma das mais competentes da sua geração, estava entre os jornalistas que denunciaram o uso fraudulento de nomes e CPFs para disparos de mensagens no WhatsApp em benefício de Bolsonaro. Uma de suas fontes, Hans River, ao depor na CPMI das Fake News do Congresso, disse que Patrícia teria tentado obter informações “a troco de sexo”, embora as trocas de mensagens entre os dois provem exatamente o contrário. Em sua coletiva informal diante do Alvorada, a mesma em que costuma mostrar bananas para os jornalistas, Bolsonaro atacou: “Ela (Patrícia) queria um furo. Ela queria dar o furo (pausa para risos) a qualquer preço contra mim”.
A jornalista que denunciou Bolsonaro por planejar explodir bombas nos quartéis.
A relação de Jair Bolsonaro, então capitão do Exército, com a imprensa iniciou em setembro de 1986, com a revista Veja. Naquele tempo, a Veja era a principal revista semanal do país e ser a principal revista semanal do país era algo muito importante. A tiragem chegava perto de um milhão de exemplares, o que é muito para um país de não leitores. Todas as pessoas que tinham qualquer poder, em diferentes áreas e níveis, liam a Veja já no sábado pela manhã. Na segunda-feira ou ainda no domingo, os principais jornais do país com frequência repercutiam algum furo da Veja. Foi neste palco midiático que Bolsonaro fez sua estreia muito bem sucedida na política: em artigo intitulado “O salário está baixo”, o jovem capitão reclamava da política salarial para os militares de José Sarney, o primeiro presidente civil depois da ditadura que oprimira o país de 1964 a 1985.
Um ano depois, porém, Bolsonaro odiaria a Veja. A “culpa” era de uma mulher: a jornalista Cassia Maria Rodrigues. Ela revelou o plano “Beco Sem Saída”, feito por Bolsonaro e um colega conhecido como “Xerife” (Fábio Passos), que consistia em botar bombas nos quartéis, mas sem ferir ninguém, para chamar a atenção para os baixos salários dos militares. Esta história está minuciosamente contada no livro O Cadete e o Capitão (Todavia, 2019), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, cuja leitura recomendo.
Precisamos falar sobre Dilma Rousseff.
Quando parte da sociedade brasileira se choca com a violência de Bolsonaro contra as jornalistas mulheres, é necessário voltar os olhos para a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Perguntar-se o porquê de tanto ódio contra Dilma, o que é muito diferente de divergir de suas ideias e de seu governo. Ódio é de outra ordem, movido por outras ordens de circunstâncias. Um dos ataques mais vergonhosos foi a imagem do estupro recorrente da presidenta. No segundo semestre de 2015, um adesivo apareceu no tanque de gasolina de carros pelo país. Representava a figura de uma Dilma sorridente, de pernas abertas. Quando o carro era abastecido, a bomba de gasolina penetrava sexualmente a presidenta do país. Quem usava o adesivo justificava a montagem criminosa como um protesto contra o aumento da gasolina, mas a mensagem era tão explícita quanto o ato. A presidenta era estuprada a cada vez que o tanque era abastecido.
Bolsonaro, é necessário afirmar mais uma vez, não é um produto da ditadura. Bolsonaro é um produto da democracia deformada que se seguiu à ditadura. Foi essa democracia tantas vezes covarde e acovardada - conivente tanto com a impunidade dos crimes do regime de exceção quanto com a tortura e a morte dos mais pobres – que garantiu a sua impunidade desde o plano terrorista de 1987. O antipresidente que hoje governa o Brasil é o principal exemplo de toda a corrupção do sistema que finge denunciar. Só as instituições que até hoje falharam, deliberadamente ou não, em responsabilizá-lo pelos seus atos e falas podem impedir Bolsonaro de seguir produzindo violências contra as mulheres, contra os negros, contra os indígenas, contra a Amazônia, contra o planeta que depende da Amazônia. Contra o Brasil. Só a democracia efetiva pode barrar Bolsonaro.
Termino com o desejo de que, inspiradas por Marielle Franco, as mulheres brasileiras e os homens feministas – porque feminismo é posição política, não depende de sexo e gênero – se coloquem em movimento. Que, junt@s, sejamos capazes de resistir e obrigar as instituições brasileiras a se reencontrarem com a vergonha enquanto ainda é possível. O tempo se esgota.
Fragmentos do Texto original publicado no EL País, que você pode ler por completo Aqui.
*****
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: desacontecimentos.com