UFRJ, Rio |
Pepe Mujica socou-me o estômago
Acabei de comprar meu primeiro iPhone. Usado, modelo antigo, mas iPhone.
O ex-presidente uruguaio, reunido com milhares de estudantes no Rio, disse a mim, e a todos que o ouviram, para não confundirmos consumo com felicidade. Ele lembrou que, ao imitar os consumidores dos países centrais, estou contribuindo para a desigualdade do meu próprio país
Sempre cultivei certa birra para comprar produtos da Microsoft ou da Apple. Mas, isso não me impediu de ter um notebook HP com Windows, embora saiba da existência do Linux e do Ubuntu. E agora um iPhone. Além de ter um Nike nos pés. E, olhando melhor ao meu redor, podia listar muitos outros exemplos. Fiquei com muita vergonha. Com mais vergonha ainda por me considerar de esquerda. Acho que vou ter de parar de brigar quando for chamado de esquerda caviar.
Gosto muito de, socialmente claro, tomar uma cachaça ou um whisky. A diferença econômica entre os dois é imensa. A cana é produzida no nosso solo, destilada aqui, engarrafada aqui, tudo aqui, fazendo com que todo o fluxo de dinheiro se distribua dentro do Brasil. Quanto ao whisky, podemos imaginar para onde vai nosso dinheiro. Além disso, reclamamos que a grana da Ambev financia o que há de pior na política e bebemos suas cervejas, certo?
Conheço Paris, mas não conheço a Chapada Diamantina. Estou achando meu carro meio velho e pensando em trocá-lo. Não vou dizer a idade dele para você não rir de mim. Também não vou falar sobre os aparelhos quebrados que tenho em casa e que estão encostados porque achei melhor comprar outro.
Nem vou confessar que, depois da abertura comercial que fez Fernando Collor, passei a não gostar de macarrão nacional, muito menos, de molhos de tomate feitos aqui. Puxa vida, Dom Pepe tinha de aparecer por aqui para me jogar essas coisas na cara?
Celso Furtado disse muitas vezes, e repetiu em 2002, que nossa sociedade brasileira “pretende reproduzir a cultura material do capitalismo mais avançado, privando assim a grande maioria da população dos meios de vida essenciais”. É uma relação de causa e efeito, sim. Consumimos como os desenvolvidos, mandamos nossos recursos para fora, deixamos de gerar desenvolvimento aqui e perpetuamos a desigualdade. Cristalino, não é?
Para não termos dúvida, veja quanto sua família gasta na feira, no supermercado e com bens de consumo duráveis, tipo eletrônicos, carros, etc.. A grana da feira gira praticamente toda aqui dentro do país, mas é pouco. Você vai perceber que o gasto do supermercado já é mais alto, já tem multinacional ou empresa no exterior levando uma parte importante. Com os duráveis não preciso nem falar para onde vai a maior parte do seu dinheiro. Mudar nosso padrão de consumo não resolve tudo, mas a mudança passa por isso.
O capitalismo de hoje precisa do hiperconsumo, disse Mujica. Enfatizou que a questão fundamental é cultural, não é só uma mudança de sistema: nunca haverá um mundo melhor, se não lutamos para mudar nós mesmos. Meu estômago ainda dói. Mas, como ele mesmo afirmou ontem, a dor, às vezes, ensina mais que o triunfo.
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Por César Locatelli