Festa da Penha: germe das escolas de samba
Reunidas pelo intendente Paulo Fernandes Viana, na Intendência-Geral de Polícia, no Campo de Santana, as irmandades e demais confrarias religiosas que congregavam negros escravos e libertos foram comunicadas que a partir daquele ano, 1817, estavam proibidas as festas “de congos” e demais reuniões que aquelas entidades realizavam em toda a cidade do Rio de Janeiro, principalmente no Campo de Santana - hoje, Praça da República -, por ocasião das celebrações de seus santos padroeiros. A alegação apresentada pelo nobre foi a de que o Rei D. João VI, “para sossego público, mandou suspender estas festas que traziam transtornos para a população da Corte”. No ano anterior, elas já tinham sido proibidas devido ao luto pelo falecimento da Rainha D. Maria I. Agora, aproveitando a ocasião, ele determinava o cancelamento em definitivo dos eventos.
Informados pelas entidades de negros que tais festas eram as principais fontes de renda que obtinham para se manter e prestar auxílios aos seus membros, Paulo Fernandes Viana obteve autorização do rei para oferecer 50 mil réis em subsídios anuais em troca do seu cancelamento. As confrarias menores aceitaram, mas os irmãos de N. Sa. do Rosário somente requereram a subvenção em 1822, quando o intendente já havia falecido e o Brasil vivia a efervescência política que levaria à sua separação de Portugal.
Essas informações constam do manuscrito II-34.28.025, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, requerimento da Irmandade de N. Sa. do Rosário e São Benedito a José Bonifácio de Andrada e Silva solicitando “receber pelos cofres públicos um subsídio anual em substituição às esmolas que arrecadavam com suas danças por ocasião das festividades de seus padroeiros". O despacho final manda pagar um único subsídio aos irmãos do Rosário e extinguir a prática.
A Corte portuguesa no Brasil
Tudo começou com a chegada ao Brasil da Família Real portuguesa, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão que invadiram Portugal. Com ela vieram mais de dez mil pessoas, que foram alojadas às pressas no Rio de Janeiro, transformando a pequena cidade colonial dos vice-reis em capital do Império português na América. Até então, a cidade alojava uma população de 60 mil pessoas em quatro mil residências. A população era composta 47 mil pessoas livres, mil libertos e 12 mil escravos, que viviam numa estreita faixa de terra entre o mar e a montanha. Os negros somavam em torno de 50% do total.
Na época, o Rio de Janeiro exibia aos viajantes estrangeiros vindos com a Corte um aspecto típico de cidade da África, devido à imensa quantidade de negros africanos que circulava pelas ruas, e isto incomodava os olhares de quem pretendia reproduzir na capital do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves aparência próxima das cidades europeias. Para atingir os objetivos da Corte, essas danças de pretos deveriam ser proibidas ou pelo menos removidas para longe dos olhares da nobreza. Durante todo o período colonial, essas festas que as irmandades de negros promoviam foram toleradas pelos vice-reis do Brasil.
A reação dos negros à proibição
Não ficou barato para a Corte de D. João VI essa proibição. Os pretos de N. S. do Rosário, a mais antiga das confrarias de negros, e muitas outras entidades congêneres resistiram. Apesar da repressão, Rugendas registrou em sua tela o cortejo da festa que assistiu entre 1823 e 1825. O pintor francês Jean-Baptiste Debret pintou numa aquarela a Mesa da Irmandade N. Sa. do Rosário do Rio Grande Sul coletando esmolas, para ilustrar como era no Rio de Janeiro antes da proibição. O mesmo Debret foi testemunha de um cortejo, quando os membros da irmandade disfarçados organizaram um cordão que exibia sua Corte africana durante o carnaval na cidade. Era o embrião das atuais escolas de samba.
Cada irmandade de negros, além dos seus administradores, tinha seus reis ou imperadores, seus duques, seus marqueses e condes, mimetizando o poder político da época. Eles eram escolhidos entre seus anciãos por ocasião das comemorações das festas anuais da irmandade. A festa religiosa continha barracas, músicos, danças ao som dos batuques. Estes considerados ruidosos e lascivos pelas elites. Com a proibição, os costumes religiosos e profanos herdados da escravidão prosseguiram na quase clandestinidade, desembocando no carnaval carioca. Com sua proibição, a comunidade negra ficava privada de sua principal festa de congraçamento e desafogo do regime de escravidão.
O bairro da Penha como solução
Mudando as datas e locais da festas, negros escravos e libertos continuavam sendo vistos pela Corte, apesar da perseguição. Paulo Viana recebeu então a incumbência de procurar uma saída para o problema. Por ordem do rei, em 1819, determinou ao comandante militar do distrito de Irajá, na Zona Norte da cidade, que preparasse o arraial da Penha para receber essas festas. Lá já havia, desde o século XVIII, a Festa da Irmandade de N. Sa. da Penha, que ficava restrita aos habitantes do local. Assim, promoveu uma série de melhoramentos, como a abertura de ruas, organização do porto de Mariangu (atual Praia de Ramos), do tráfego de passageiros, policiamento, normas para os estabelecimentos comerciais, entre outros, transformando-a em festa da Corte.
Com a presença maciça das confrarias negras, a Festa da Penha ganhava o impulso que a transformaria na segunda maior festa da cidade, só perdendo para o carnaval. Caráter este que perduraria até meados do século XX, numa sobrevivência sempre marcada pelos ataques dos membros do clero, da imprensa conservadora e das elites do Rio de Janeiro.
Essa remoção forçada, curiosamente, criou no Rio de Janeiro a condição única de união das diversas manifestações culturais dos escravos e libertos. Cada nação passou a apresentar no Largo da Penha o que ficava restrito à sua comunidade nas igrejas da cidade. No mesmo espaço, congos, benguelas, moçambiques, minas, malês, angolas e outras nações se apresentavam com suas músicas, vestimentas, comidas, idiomas. Naturalmente, contrariando o desejo da Corte, esse deslocamento aproximava agrupamentos afro-brasileiros que até então se rivalizavam, mesclando suas culturas, redefinindo suas tradições.
Essa aproximação durou mais de 80 anos, tempo suficiente para os adventos da Abolição da Escravatura e Proclamação da República, quando a proibição das danças dos pretos já não mais era justificada pelos detentores do poder.
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por Jacir Roberto Guimarães, do GGN