"Impregnado de uma aura suína, que os analfabetos funcionais chamariam de “espírito de porco”, sempre me borrei de medo de poetas. E fujo deles como o diabo da cruz. Fosse este escriba um poeta, jamais declamaria um verso-clichê envolvendo diabos e cruzes. Mas passemos ao próximo parágrafo, para me livrar um pouco da pecha de medroso.
Na percepção imbecilizada dos não-leitores de poesia, o poeta não passa de um bicho amorfo e lamentoso. Escondido e suspirante no seu cantinho abandonado da casa: o quarto de despejo transformado em escritório. O incapacitado a aceitar as segundas intenções de um praticante da poesia não passa de um ingênuo. Na sua ignorância presunçosa, pensa que é superior ao senhor das torres de marfim, ao rei das metáforas do ser e do estar.
Os poetas tradicionais, que a Geração Y fez o favor de transformar em autores de frases de efeito fast-food, foram devidamente devorados por este cartunista. Como muitos leitores de poesia erráticos e ocasionais, li Vinicius de Moraes e Fernando Pessoa. Arrisquei leituras esparsas de Mario Quintana, “poeta-fofo” da vez. Sorvi hai-kais de Millôr Fernandes à cowboy. Encarei João Cabral de Melo Neto com a garganta seca. E espiei a expiação bem-humorada de Manoel de Barros num documentário que só vendo. E só.
Petardos poéticos
A verdade é que fujo de poetas por convicções capricornianas. Porém, dotado de uma cara de pau superior ao meu cagaço, finalmente encarei um livro de poesia sem neuras preventivas. O livro se chama Fresta por onde olhar. A autora é Ana Elisa Ribeiro. Com esse nome de professora, Ana só podia ser uma mestra, de vasta carreira acadêmica em suas Minas Gerais. Antes dos dois pós-doutorados, das atividades literárias e do filho, teve curta carreira de vocalista de banda de rock. O que talvez explique a fúria, a ironia e o vigor de sua poesia.
A cada poema do livro Fresta por onde olhar, parei para respirar fundo, contar até dez e seguir em frente. Ana Elisa expõe sentimentos intensos e complementares, dignos de uma alma feminina legítima. Não que almas femininas não tragam o imprimatur de sua condição essencial. Mas a autora nada tem de dissimulada. E dá-lhe tapa na cara do leitor. Haja tapa no homem amado sem luva de pelica. E durma-se com um barulho desses. Barulho de uma mulher que confessa a necessidade de compartilhar-se. E suporte-se tal furacão de ironia incontida. Ironia que, longe de humilhar o parceiro de vida, coloca-o no seu devido lugar.
Certos petardos poéticos deveriam vir com adicional de insalubridade no preço final, feito um imposto revoltante, mas necessário. Com o riso vitorioso de uma artista nada previsível, Ana talvez concedesse licença poética a tamanho absurdo".
Érico San Juan é cartunista, Piracicaba, SP.
Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa.
Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa.