A sambista Leci Brandão é um patrimônio nacional.
No ano em que se comemora o centenário do samba, ouvi-la é missão. Por sua história artística pessoal e pela riqueza de narrativas que testemunhou e protagonizou e personagens com quem conviveu. O Portal Vermelho compartilha com você, internauta, histórias de samba contadas por quem traz a herança do berço.
A conversa foi na Assembleia Legislativa de São Paulo no começo da tarde deste novembro, mês que mal consegue se manter em pé após um ano de tanto ebulição política. Leci conhece o parlamento também. Cumpre o segundo mandato como deputada estadual pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB-SP) em São Paulo. Gabinete aberto ao povo, generoso, como o seu samba.
Quando Leci surgiu para o Brasil trouxe com ela o universo comunitário, étnico e sonoro da população negra de uma parte do Rio de Janeiro. Um conhecimento que nasceu em casa no cotidiano da dona Lecy, mãe da cantora e da madrinha Lurdes Bolão.
“A minha família, minha mãe, a minha avó e a minha madrinha saíam na Mangueira. A irmã de dona Neuma, acho que era a Cecéia, trabalhava na fábrica de tecidos Confiança junto com a minha mãe. Hoje o local é um supermercado”, contou Leci.
A Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial funcionou em Vila Isabel de 1936 a 1960 e foi citada nos versos de Noel Rosa: “Quando o apito da fábrica de tecidos...”.
Leci era pequena no período a que se refere. “A Lurdes trabalhava com minha mãe na fábrica e morava no morro. O Jamelão trabalhava na fábrica junto com minha mãe. Conheci dona Zica quando ia almoçar na casa da Lurdes. Ela fazia feijão, matava porco. Eram todos mangueirenses. Não conheci dona Zica porque queria conhecer a mulher do Cartola. Era o ambiente natural”, contou Leci.
Dona Neuma, Jamelão, Cartola e Dona Zica são nomes conhecidos do brasileiro a despeito do desleixo e omissão das instituições do país com a memória da cultura negra e popular.
Adulta, Leci foi levada pelo sambista Zé Branco (descrito por ela como “branquinho de olhos azuis”) a uma reunião na ala de compositores da Mangueira. Ela tinha 29 anos. Cartola, Carlos Cachaça eram alguns dos bambas. Fez “estágio” (precisava apresentar os próprios sambas e passar pelo crivo dos veteranos) e um ano depois recebeu a carteira de compositora da Mangueira.
Da tradição veio a reinvenção do samba particular criado por Leci Brandão: A denúncia social presente no samba se potencializou e a artista incorporou temas de segmentos discriminados, como negros, o universo homoafetivo e os povos indígenas. A estreia de Leci fez muito barulho e pautou a imprensa e os produtores culturais na década de 70: Mulher, negra, do subúrbio, compositora, cantora, integrante da ala de compositores de uma das mais tradicionais bandeiras do samba do Rio. E engajadíssima.
A origem musical e social de Leci não a impediu de trilhar caminhos próprios. Com personalidade desde a estreia, a carioca nascida em Madureira registrou sambas de sua autoria no primeiro LP, gravado em São Paulo em 75 pela Marcus Pereira. Em uma crescente, os trabalhos seguintes de Leci amenizavam na narrativa para dar visibilidade às minorias.
“O foco era muito a denúncia social. As minhas composições cantavam as minorias, falavam da luta. Era uma cantora de protesto sem saber que era. Isso era uma coisa da minha vida, do meu dia a dia. Não é porque estava na moda. O que chamou a atenção da imprensa na época eram as observações políticas”, recordou Leci.
A facilidade da criação se aguçava quando Leci se deparava com situações que a comoviam. Assim nasceu a música Ombro Amigo, que virou tema da novela Espelho Mágico da rede Globo e sucesso em boates por todo o país. Uma entrevista da cantora ao jornal de temática LGBT Lampião da Esquina e a história ouvida de um homem, que só poderia ter um relacionamento amoroso com outros homens se frequentasse boates, motivou o samba.
“Eu já era compositora oficial da Mangueira e fui fazer uma matéria para o jornal Lampião, do Agnaldo Silva. As pessoas se espantaram: como eu compositora da Mangueira ia dar entrevista para um jornal considerado marginalizado? Ai fiz a composição. A música não falava nada de homossexualidade. Era uma música de amor”.
Os mesmos motivos que deram visibilidade a Leci serviram de argumento para que ela sofresse cinco anos de ostracismo do mercado fonográfico. Foram cinco anos sem gravar após a censura da Polygram ao repertório apresentado por ela, incluído aqui Zé do Caroço, a subversão do negro, do pobre, do suburbano de sua condição de subjugado. “Amanhã vai fazer alvoroço alertando a favela inteira”.
A partir de 1985 na Copacabana, a cantora volta ao mercado e às raízes. “Adiel de Carvalho que me levou para a Copabacana me falou que os discos anteriores eram muito elite, muita orquestra e que os próximos poderiam ser como se estivesse no buteco tocando. Cavaco, banjo, violão, tantan e pandeiro. Ficou tudo bacana”, disse Leci.
Adiel que conhecia profundamente a carreira de Leci até aquele momento afirmava que a forma dos discos de Leci a distanciavam do povo. “Ele me disse uma coisa: Você canta para o seu povo. Mas do jeito que estão trazendo, o seu povo não está alcançando você”, relembrou Leci.
A orientação de Adiel aliada à produção do cavaquinhista Alceu Maia fez a carreira de Leci trilhar outro caminho a partir de 85. “Vieram para os discos a roda de samba, veio o baião, veio o xote, o bumbá, o bumba boi. Aí as pessoas diziam: agora a Leci tá fazendo folclore. Não é nada disso: isso é música brasileira”.
Além de Zé do Caroço, o LP que deu uma nova guinada na carreira de Leci trazia ainda a clássica Isso é Fundo de Quintal (c/Zé Maurício), uma das músicas mais executadas da sambista, e Papai Vadiou (Rody do Jacarezinho e Gaspar do Jacarezinho).
“Tem lugares que vou bem distantes do meu habitat e as pessoas tem todos os meus discos e isso é muito legal porque o Brasil é muito grande e as pessoas te reconhecem. Até porque eu não tenho esse apoio de mídia. Sou uma pessoa do rádio”.
Excluída das bajulações da chamada grande imprensa, Leci se impôs pelo talento que esbanjava nas bancas da mais popular emissora brasileira comentando, com propriedade, o carnaval do Rio de Janeiro e também de São Paulo. Não é à toa que se comove com o reconhecimento que recebe em localidades distantes dos grandes centros. Ela furou o poderio da grande mídia.
Leci é comunidade. Palavra, aliás, que é sempre bom relembrar, foi cunhada por ela durante as transmissões de carnaval nas emissoras de televisão. Assim como o caco “diz”, que ela entremeia em trechos das músicas, comunidade é uma espécie de legado da cantora. Leci é soldada do samba e reconhece os seus.
Sobre o Centenário, ela afirma: “O que eu não gosto muito é da coisa oportunista porque agora todo mundo quer falar de samba, e tem gente falando do samba de qualquer maneira. Sempre acho que está faltando gente. As pessoas ficam mais apegadas a quem tá na mídia, quem tá na televisão, quem vai no Faustão. Acho que tem que se fazer justiça a quem sempre cantou o samba, a quem sempre respeitou o samba”, enfatizou.
A ressalva também vem acompanhada de declarações de amor: “É bacana o centenário do samba porque o samba é a música da alegria, como diz o Martinho da Vila. Você está numa passeata tem samba, no estádio tem samba, na casa das pessoas, no subúrbio ou na cidade. O samba agrega, o samba salva vidas. Eu devo a minha vida ao samba. Se não fosse o samba eu não teria construído a carreira que eu construí”, se derramou Leci.
Os 72 anos de idade e 40 anos de carreira não cabem em uma única matéria. Neste caso uma homenagem a esta artista que está ao lado do povo. Leci é a antiestrela. Representa o protagonismo da cultura popular e dos excluídos. A cidadã brasileira Leci Brandão é a voz do samba e a cara do Brasil.
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Por Railídia Carvalho