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O suicídio da “classe média”

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Principal afetado nessa nova rodada de desmantelamento social será o que sobrou da “classe média”.

Por Maurilio Lima Botelho.
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Quase metade dos empregos no Brasil duram menos de um ano. Os brasileiros acima de 10 anos que recebem até 2 salários perfazem mais de dois terços da “população produtiva”. Cerca de 10% dos contratos de trabalho no Brasil são temporários (até 3 meses) e sua participação têm crescido nos últimos anos. Do total de brasileiros “empregados” – o que exclui 13 milhões de desempregados e quase 25 milhões de “trabalhadores por conta própria” –, 25% não tem carteira assinada. Entre os que têm contrato, mais de 20% já estão em empresas terceirizadas. Nas empresas terceirizadas, quase nenhum emprego ultrapassa dois anos. 


Esses números revelam que a baixa remuneração, a alta rotatividade e a precariedade já são uma realidade comum de boa parte dos brasileiros. A aprovação da terceirização irrestrita e a ampliação do tempo para os contratos temporários vai agravar ainda mais esse quadro, mas indica também que o principal afetado nessa nova rodada de desmantelamento social será o que sobrou da “classe média”.

Durante os anos de FHC, as camadas de renda média sofreram um achatamento em decorrência da estagnação econômica e do arrocho financeiro. Com os governos de Lula e Dilma, essas camadas sentiram-se preteridas diante das medidas de compensação social dirigidas aos mais pobres e da multiplicação das fortunas da elite. A famigerada “nova classe média” foi menos um processo de “ascensão”, como alardeado pelos ideólogos governistas, e mais uma mimese consumista em que os estratos inferiores emulavam o consumo dos setores médios tradicionais graças a uma pequena melhoria de renda, acesso ao crédito e endividamento. As últimas rodadas da crise mostraram como um lento processo que aparecia como uma mudança na estrutura social pôde ser rapidamente destruído quando a bolha do crédito explodiu.

Não foi um acaso que do ciclo de greves e difusas manifestações de 2012/2013, a “classe média” restou como única “base social” mobilizada contra o governo Dilma em 2014/2015. Uma parte dela composta por integrantes dos próprios serviços públicos – bastião ainda do emprego estável –, já que em 2012 ocorreu o maior conjunto de greves do funcionalismo federal. Sentindo os efeitos da crise, essa mobilização contra o governo Dilma foi embalada no discurso requentado da “ética do trabalho” e contra os programas de distribuição de renda e assistência social. Como disse um deputado do PMDB, o processo de impeachment representava o fim da “era do vagabundismo remunerado”. Até nas universidades foi possível ver o ódio de professores e estudantes de “boas famílias” diante da ampliação do acesso popular ao ensino superior, particularmente através das cotas.

É quase uma “astúcia da razão” que sejam exatamente as camadas médias as principais atingidas pela terceirização irrestrita. O ressentimento destas contra os mais pobres já era um resultado da precarização: a crítica norte-americana Barbara Ehrenreich mostrou como, nos EUA, os profissionais de “classe média” sofreram um choque ao ter que conviver com a mesma incerteza diária e os salários parcos comuns aos mais pobres, pois tinham sido “criados com a expectativa do velho mundo protestante de que o trabalho árduo é recompensado com conforto material e segurança”. O discurso da recompensa ao empreendedor, da premiação do esforço e do mérito foi operacionalizado num duplo sentido: de um lado, contra as compensações sociais para os excluídos; de outro, como adequação pessoal às condições neoliberais da concorrência selvagem e do “empreendedorismo”. Por aqui, numa cruzada contra o que se acredita ser o “petismo”, o antropólogo Roberto Da Matta chegou mesmo a fazer elogios ao “homem comum, da classe média” que “trabalha para sustentar um Estado a ser descontaminado de sua imagem de fiador do roubo, da incompetência e de uma burocracia marginal à norma da igualdade”. Agora não vai faltar oportunidades à “classe média” para mostrar seus méritos em condição de concorrência e capacidade de inovar – afinal, como conclui o discurso que ela alimentou e do qual agora será mais uma vítima, as “restrições legais” trabalhistas foram suprimidas para o desenrolar do livre empreendimento.

Mas é um engano achar que isso pode significar uma futura inversão de comportamento e uma “solidariedade de classe” gerada pelo rebaixamento social. A crença numa possível “unidade classista”, exatamente num momento de dissolução das classes identificadas pelo trabalho, soa como nostalgia da era fordista. O “medo da queda” não tem produzido um sentimento de pertencimento aos grupos inferiores, pelo contrário, tem provocado nos segmentos menos precarizados um apego ainda maior ao “diferencial” de sua posição social. Como “a mobilidade descendente provoca uma sensação de fracasso, rejeição e vergonha”, há ainda mais insistência no seu “capital cultural” para estabelecer uma distância em relação ao fundo social. Isso é visível entre os “profissionais liberais” que, frente à decadência econômica, se endividam cada vez mais para trocar de carro todo ano, viajar para o exterior ou pagar o aluguel elevado da residência próxima a uma praia poluída. Nos EUA, o emprego em tempo parcial permite compensar precariamente, com cada vez mais trabalho e menos sono, os efeitos do empobrecimento. A terceirização e flexibilização vão criar aqui essa “oportunidade” de se manter o status alcançado com “tanto esforço, investimento e estudos”. 

A ruína da “classe média” é o sintoma de algo mais profundo: o próprio fracasso dessa sociedade como um todo. Sempre houve pobreza na história do capitalismo – até mesmo nos subúrbios europeus e nos guetos americanos, no auge do pós-guerra. Isso sempre foi mobilizado em tom cínico para que se pudesse manter vivo o discurso do esforço pessoal como mecanismo de ascensão. Com o declínio dos setores médios, são as próprias ilusões em torno dessa sociedade que se esfumaçam. Afinal de contas, como diz Barbara Ehrenreich, essas “pessoas ‘seguiram as regras do jogo’, fizeram ‘tudo certinho” e, mesmo assim, terminaram arruinadas”. 

A tensão social aprofundada já se faz notar em formas particularmente destrutivas dessa ideologia do mérito e do êxito pessoal: na falta de condições de sustentação, o “macho” responsável pela família assassina os próprios filhos. São vários os casos relatados pelos jornais. Recentemente, num bairro “nobre” do Rio, um homem matou a esposa e jogou os filhos do alto do prédio em que moravam. Escreveu uma carta com a seguintes palavras: “Me preocupo muito em deixar minha família na mão. Sempre coloquei eles à frente de tudo. Mas está claro para mim que está insustentável e não vou conseguir levar adiante. Não vamos ter mais nada e não vou ter como sustentar a família. Não vou ter onde trabalhar”. Atirou-se depois.

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Do Blog da Boi Tempo.

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