Marielle Franco e Nadir Kfouri: separadas pelo tempo, unidas pela História.
A ex-reitora da PUC-SP, que enfrentou a ditadura civil-militar, foi homenageada com a vereadora carioca, executada há quase um mês. Ambas dedicaram a vida à democracia. Homenagem no Tucarena teve tom de resistência diante do grave momento político do Brasil.
São Paulo – Dois banners são colocados no histórico palco do Tucarena, anfiteatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Lado a lado, as imagens de Nadir Kfouri e Marielle Franco, duas mulheres que apesar de nunca terem se conhecido, a história se encarregou de unir na noite desta terça-feira (10).
Nadir Kfouri (1913-2011), primeira mulher do mundo a tornar-se reitora de uma universidade católica, entrou para a história do Brasil pela postura firme com que defendeu a universidade durante a invasão policial de 1977, em plena ditadura civil-militar, na noite em que jovens se reuniram para tentar efetivar a reorganização da União Nacional dos Estudantes (UNE). Diante do então temido secretário de Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, dona Nadir, como era conhecida, se negou a cumprimentá-lo. “Não dou a mão a assassinos”, disse, e virou-lhe as costas.
Planejado em 2017, o ato no Tucarena tinha o objetivo inicial de conceder a Nadir Kfouri o título de cidadã paulistana post mortem, homenagem idealizada pelo mandato da vereadora-suplente Isa Penna e do vereador Toninho Vespoli, ambos do Psol. A trágica execução da vereadora carioca Marielle Franco, no último dia 14 de março, alterou o rumo da solenidade. Diante do choque da morte da companheira de partido, os organizadores da homenagem à ex-reitora da PUC-SP decidiram unir, no mesmo ato, estas duas mulheres defensoras intransigentes da democracia.
“Duas grandes brasileiras. Uma viveu quase 100 anos, a outra foi executada antes dos 40. De Nadir Kfouri temos um passado que fazemos questão de honrar. De Marielle Franco temos o futuro que ela não viveu, mas que nós temos a obrigação de levar como bandeira”, afirmou o jornalista Juca Kfouri, sobrinho da ex-reitora da PUC e apresentador do programa Entre Vistas, da TVT. Primeiro a discursar na solenidade, ele lembrou de Dom Paulo Evaristo Arns, e disse sentir saudade do amigo neste momento grave da democracia brasileira, “golpeada por todos os lados”.
“Dom Paulo jamais diria que Dom Angélico não representa a Igreja Católica. Dom Paulo estaria ao lado de Dom Angélico, porque Dom Angélico está do lado dos excluídos. No sábado, quando Dom Angélico estava no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, estava ao lado do rebanho dele”, afirmou Juca Kfouri, se referindo à crítica feita pela Arquidiocese de São Paulo sobre a presença de Dom Angélico, no último sábado (7), na missa em homenagem a Marisa Letícia, horas antes do ex-presidente Lula ser preso.
“Marielle, presente! Nadir, presente! E Lula livre!”, exclamou o sobrinho de Nadir, dando o tom do refrão que seria dito por outros oradores durante toda a solenidade.
Força feminina
Sentada ao lado de Juca, a atual reitora da PUC-SP, Maria Amalia Pie Abib Andery, ponderou sobre a responsabilidade de estar no mesmo cargo um dia ocupado por Nadir, e ter que honrar sua memória e práticas. “Não sei em que partido político Nadir estaria, mas sei que abriria as portas da universidade para todos aqueles que lutam por um país democrático. Estaria do mesmo lado da história em que estaria Marielle, assim como todos nós, e pelo tempo que fosse necessário”, afirmou.
Enquanto a reitora dizia suas breves palavras, Marinete da Silva, mãe de Marielle, entrelaçava as mãos com as de Renata Souza, ex-chefe de gabinete da vereadora carioca assassinada, e Talíria Petrone, vereadora do Psol na cidade de Niterói (RJ).
E coube justamente a Talíria Petrone o discurso que inflamou os ânimos dos presentes no Tucarena, aplaudida de pé por uma plateia tomada pela emoção. “Esse é um momento de dor e potência. Essas duas mulheres se encontram no tempo sombrio do presente e numa história que ainda não terminou. A ditadura ainda grita por meio do que acontece na política, na violência, na prisão de Lula, e se expressa na execução da Marielle”, afirmou.
“A execução da Marielle terminou de enterrar a democracia incompleta do Brasil. Se tentaram calar a voz da Marielle e dar um recado, esse recado não chegou, nem vai chegar, porque não vamos dar nenhum passo atrás”, exclamou. “Estão brotando ‘Marielles’ nas favelas do Brasil! Todos nossos mortos vivem! Marielle viverá sempre em nós!”.
Em seguida, Renata Souza acusou a imprensa por indicar, “todos os dias”, qual é a população “matável” no Brasil, quem “pode morrer”, uma referência às reportagens preconceituosas contra a população negra, pobre e periférica do país. Renata criticou ainda o uso dado pelo jornal O Globo para a palavra “guerra”, na frase agora imortalizada de Marielle Franco – “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.
Para Renata Souza, o jornal carioca distorceu o sentido da frase dias depois da execução da vereadora, usando-a como justificativa para a intervenção militar. A ex-chefe de gabinete fez questão de explicar que o sentido da frase sempre foi uma referência contra a guerra às drogas, cujo resultado diário é a morte de negros e pobres moradores das favelas e periferias. “Falar que Marielle queria intervenção militar é matar Marielle de novo!”.
Passava das 21h quando o público do Tucarena se postou de pé para ouvir Marinete da Silva. Ela logo disse que estar num ambiente pedagógico era tudo o que a filha queria, e reconheceu estar no primeiro evento público após o assassinato de Marielle. “Ela só queria uma coisa: defender a minoria, dando voz a quem não tinha. A construção de vida da Marielle foi sempre voltada pelo social. E essa luta vai ser intensa, vamos continuar com ela”, afirmou. “A covardia que fizeram com a minha filha não tem tamanho. Esse legado não pode ficar aqui. Ninguém imaginava que minha filha fosse fazer tanto barulho depois de morta".
Proponente da homenagem, Isa Penna enfatizou que prisões e assassinatos não irão intimidar os que lutam pela democracia no Brasil. “Quando eles prendem um de nós, temos menos medo de sermos presos. Quando eles matam um de nós, temos menos medo de morrer".
Já o jurista Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da própria PUC-SP, propôs enfrentar com delicadeza o grave momento político do país. “É com delicadeza que temos que responder a essa violência que estamos recebendo agora. Aprendi isso com dona Nadir. Para resistir àquela violência da ditadura, tinha que ser muito forte, tinha que ser mulher.”
Serrano destacou que o Brasil passa por um momento de medidas tirânicas com “roupagem” de legalidade. Ponderou que durante o século 20, o inimigo era "o comunista", porém, era considerado comunista qualquer liderança social, jornalistas, advogados, sindicalistas e até pai de santo. A partir dos anos de 1990, o inimigo passou a ser “o bandido”. E quem são os bandidos?, questionou o professor. “É quem comete crime? Não, é o pobre e o negro que moram nos territórios ocupados pela pobreza”, respondeu.
Neste contexto, Serrano acredita que o ex-presidente Lula não foi condenado por supostos crimes que tenha cometido, mas sim porque tem origem pobre e é nordestino. “Lula foi julgado por juízes do Sul e do Sudeste, que nós conhecemos bem. Não foi julgado por nenhum nordestino.”
Ao final da cerimônia, Camila Kfouri, neta de Nadir, recebeu em nome da família o título de cidadã paulistana da avó. E reconheceu estar diante de um momento confuso. “É um sentimento ambíguo. Quando tudo parece tão distante dos nossos sonhos, alguém está sendo colocado no seu devido lugar”, definiu. Lembrando que o discurso e a prática da avó eram sempre iguais, Camila Kfouri disse que a figura da reitora respeitada era a mesma da pessoa da família. “Marielle era imprescindível, como a Nadir. E nada mais justo que se encontrem hoje. A biografia delas nos autoriza dizer que estariam, sim, lutando pela democracia, a igualdade e a emancipação da juventude”, afirmou.
Ana Cañas, que havia aberto o ato cantando Velha Roupa Colorida, de Belchior, encerrou-o cantando Tigresa, de Caetano Veloso, levando às lágrimas muitas das pessoas presentes.
Sem desespero
Emocionado, com os olhos marejados, o jornalista Juca Kfouri subia as escadas do Tucarena quando foi lembrado pela reportagem da RBA que, recentemente, durante gravação do programa Entre Vistas com o sociólogo Jesse Souza, perguntou a ele se acreditava que viveria para ver o fim da escravidão no Brasil.
– Juca, você acha que vai viver pra ver atos como o de hoje não serem mais precisos no Brasil?
– Eu não. Estou com quase 70 anos, não vou viver até os 100 anos. Eu não, mas tem que perseverar.
Desesperar, jamais.
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por Luciano Velleda, da RBA e MÍDIA NINJA